A primeira vez que ouvi Fela Kuti & Afrika 70 foi arrebatadora, uma conexão imediata que, a partir dali, fez com que ele já fizesse parte de mim. Para mim, música é isso: quando entra na alma, ela se torna parte de você, muda seu humor, alinha chakras e mistura tudo.
Esse som alucinante tem como protagonista o homem mais corajoso de que já ouvi falar. Seu discurso revolucionário, anticolonial e pan-africanista era sua vida, sua luta, sua obsessão; e a música, sua arma. 'Music is the weapon!' diria Fela.
Kalakuta Republic é o título dessa arte, simbolizando também uma era. Kalakuta era a casa de Fela, um prédio de dois andares em Lagos que abrigava muitas pessoas, incluindo sua família, sua banda, artistas e amigos. Muitas pessoas passaram por lá, como Paul McCartney e Gilberto Gil. Mais do que um símbolo artístico ao longo dos anos, a República de Kalakuta representava resistência: um país independente e autogovernado, onde as leis da Nigéria não tinham poder. Ter uma 'república' dentro de outra já era uma afronta à ditadura nigeriana. E em 1976, o caldo entornou de vez quando Fela Kuti e o Afrika 70 lançaram o disco "Zombie". Eram só duas faixas no LP, mas a música do lado A que dá nome ao disco foi sucesso em toda África e enfureceu o governo militar de Olusegun Obasanjo. O contra-ataque não demorou, em 18 de fevereiro de 1977, mais de 1.000 'soldados zumbis' atacaram e destruíram Kalakuta, molestando as mulheres e espancando impiedosamente todos os ocupantes, incluindo sua mãe, Funmilayo Ransome-Kuti, de 75 anos. Além de ser espancada, Funmilayo foi atirada do segundo andar, morrendo meses depois devido aos ferimentos.
Mais do que contar o fim da Kalakuta Republic, este quadro tenta retratar a partir de uma era o universo africano, onde personagens como Funmilayo Ransome-Kuti, Thomas Sankara, Cheick Anta Diop, Kwame Nkrumah, Lumumba e Mandela foram protagonistas, assim como Fela.
Como ele mesmo dizia: “No que diz respeito à África, a música não pode ser para diversão, a música tem que ser para a revolução.”
Definitivamente o som de Fela Kuti & Afrika 70 era tão revolucionário quanto suas letras, liderados por Fela e pelo mestre Tony Allen. Se somavam ainda as geniais Fela Queens. Fela nunca teria sido Fela sem suas Queens. Incrivelmente talentosas, elas eram um espetáculo à parte, parte essa fundamental para criação do Afrobeat e parte desse movimento de contracultura que tinha Kalakuta como sua república.
Fundamental também foi Sandra Izsadore, sem ela toda a cena contracultural criada por Fela em Lagos não teria sido possível. Foi ela quem, durante uma viagem de Fela aos EUA em 1969, lhe apresentou uma África que ele ainda desconhecia – um continente que inspirava as lutas pelos direitos civis dos negros americanos. Militante do Partido dos Panteras Negras, Sandra foi a ponte que conectou Fela ao pensamento de Malcolm X e de outros líderes do movimento negro. Em homenagem a ela, Fela compôs a primeira música a incorporar as características do Afrobeat.
Esse quadro é uma miscelânea de informações desse universo tão pesado e ao mesmo tempo rico, assustador e cheio de coragem, força e talento. Fela Kuti & Afrika 70 continua me arrebatando a cada vez que toca. E eu tenho muito que aprender ainda… Ainda bem.
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